você permanece em pé enquanto me atende
e entendo que devo ser breve.
nos conhecemos há uma década 
assisti sua barba ficar grisalha
mas não sei nada sobre você
exceto seu registro profissional
junto ao seu sobrenome composto.
não acho, honestamente, 
que essa impessoalidade 
tenha algo a ver com
ética.

no início, eu era questionadora
e irreverente 
mas depois de tantos fármacos 
eu só te relato o que você entende como sintomas
de forma bem concisa e superficial 
usando uma linguagem que foca no que pode ser entendido
como bioquímico 
-- a camada de gelo sobre um lago --
e aguardo suas soluções, esse efeito 
que sempre prima pelo
esmaecimento 
do que seria personalidade --
e assim você terá cumprido seu trabalho 

contenho os tiques de ansiedade
e omito o planejamento minucioso
do autoextermínio
porque sei o custo farmacológico
e de internação compulsória
se, aqui onde estou agora,
você concluir que estou 
como realmente estou.

há dias eu em que eu só passo por aqui
mal encosto nas paredes
os pés mal compartilham o mesmo solo
e me sinto um ponto e vírgula desse texto todo.
me consolo que 
são só burocracias e
meu tempo aqui já acabou.
mas hoje é um daqueles 
em que mais me faço parte desse lugar 
e esse sentimento de pertencimento 
é perigoso quando se trata de integrar 
uma minoria marginalizada
com a qual ninguém são quer ter a ver.
o sofrimento aqui atravessa 
qualquer manual descritivo
e números de prontuário.

você está com pressa e não pergunta mas
eu tento contextualizar 
que não aconteceu no vácuo 
nem posso enfatizar o que sinto, pois, sim --
você vai emitir exatamente essa expressão facial
em voga agora 
e dizer, sim -- exatamente --
que são coisas comuns
que acontecem mesmo
como acabou de fazer.
aguardo cinco segundos para 
sua conclusão com intervenção,
seguindo a estrutura:
você diz que o futuro está logo ali.
basta que eu a, b e c.
você até tenta acolher verbalizando que
minhas reações são esperadas
dadas as circunstâncias 
-- e eu engulo um "obrigada"
alienado,
como se devesse te agradecer
pela ínfima manifestação de humanidade.

você aumenta os antidepressivos
quando muitos dos meus sintomas 
também respondem à ordem
da privação financeira
e da desigualdade social.

sempre como se 
fosse dever de uma instância interna
alterar contingências culturais 
e bastasse uma "reestruturação cognitiva"
para reagir de forma mais
adaptativa
-- segundo critérios arbitrários 
do que seria essa adaptabilidade.

você aumenta o estabilizador de humor 
porque eu devo ser a única e suficiente
responsável por modular meus estados
como peças de argila
diante de quaisquer violências 
e devo chorar baixinho 
e ficar puta de raiva de forma mais discreta
e incomodar menos quem está ao redor
-- talvez até deixar a noite deles menos
interessante 

como se houvesse medicalização
para a própria existência 

e esse novo antipsicótico 
como se fosse possível
fazer alguém que foi severamente traído 
não desconfiar de toda intenção 
e se engajar em interações 
como se nada houvesse acontecido.

e quando você me entrega
60 comprimidos de benzodiazepínico 
e mais 30 de um sedativo cirúrgico 
me pergunto se você ouviu a parte
da ideação suicida.
algum desavisado pode argumentar
que você apenas confia em mim
quando na verdade pensamentos dessa natureza
vindos de alguém como eu
simplesmente não são mais 
levados a sério 

às vezes eu reflito sobre 
qual a fronteira entre 
ter uma doença 
uma entidade nosológica verificável e real
e ser uma mulher 
submetida a prescrições 
de padrões comportamentais de
feminilidade 
sexualidade 
relacionamentos
produtividade 
marcos acadêmicos e profissionais 
e não fazer jus a nenhum deles
para então, respeitando o dogma individualista,
responsabilizar unicamente 
as próprias incapacidade e fracasso
e o quanto não possuir recursos socioeconômicos 
para cultivar relações alternativas,
detendo o privilégio de 
experienciar outros contextos de vez em quando,
amplifica meus sintomas 

o quanto
a solidão 
a negação de direitos básicos 
a violência de gênero 
participam das minhas 
"más decisões"
e tomam a frente antes de mim.

e é ridículo, mas me pergunto
como você vai receber a notícia 
e se vai passar a sentar
enquanto atende meninas em perigo 
e se ainda vai dizer-lhes
que a vida é assim mesmo
e que basta que elas a, b e c.

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