pela manhã, eu acordo Viva
você é um Desconforto pervasivo
mas ainda há chances de --
mas ainda sobra espaço para mim --
cedo o bastante para quase não ser
cedo ainda, o frescor até me arrepia,
todos permanecem dormindo
Fins de Semana são os piores dias
é quando eu não tenho ideia
de quem você pode ser
e só sei que você tem a Faca e o seio nas mãos
corta fatias finíssimas, devagarinho e sorrateiro,
como se eu só fosse descobrir
onde sangra depois
e o que falta para --
eu mesma fazê-lo --
mas, definitivamente, há formas de vida
o céu, as pessoas, o mar, os cães
todos eles existem
numa tênue excitação pelo por-vir
a Dor é quase suportável
a Dor não chega a --
estou no lado de fora
da redoma de vidro
e eu penso, ingênua, que sim
agora acabou
que eu não tenho mais que descobrir
que não estarei bem no cerne do campo minado
que ninguém vai vir a mim te fazer réu
que não devemos mais nada um ao outro
que não são mais cruciais
as cobranças e as explicações insaciáveis
que tudo bem a Dor do já-é porque não se trata
do Horror do e-se
que é aqui onde termina
e eu começo
e terão permissão para continuar existindo
o céu, as pessoas, o mar e os cães
e tudo aquilo por-vir
mas as horas correm e nosso tempo
vai me esgotando
nossos contatos
são através das flechas que nos atingem alvos
não letais
mas persistem os feridos que não se salvam
ao todo
ao meu redor, atento um instante
para um casal de verdade
invicto
compartilhando intimidades triviais
como Amor a resposta mais natural entre dois corpos
interação fluida e de fruição
e eu me pergunto
por quê isso não foi possível para nós
se algum dia foi assim e, se sim, quando
deixou de ser
onde foi que eu me fiz tão esquiva a ponto
de não perceber seus dedos escorregando
e se eu houvesse os segurado mais forte --
e se você não houvesse tateado outros dedos
e os enfiado terrivelmente
lubrificados --
quando a Tarde desaba, eu sei
que é o momento mais propício para --
me empoleirar de volta
à redoma
à Noite eu me atiro
contra a ideia de você
e seu ex-ninho em esvaziamento
depois de variados anestésicos
e tento não te incomodar, pois você está
onde eu não alcanço
e por não ser tão elástica, não existo
e não há sequer lembranças de mim
eu sei que você fará qualquer coisa
que vai me destruir --
nalgum turno --
em breve, em breve --
à Noite eu sou coagida a esquecer
que, independente de escolha, ainda amanhece.
e que amanheço sozinha
a ser sistematicamente desmembrada
é a única certeza
e por isso rogo
com meus joelhos já de manchas cinzentas
para que os calendários terminem sem mim
e pela manhã
eu não mais arrisque
eu não mais ouse
cometer essa traição à Dor
de despertar
talvez só então você recorde
que já amanheci em você
e que nesse pequeno momento
você pensou
que, sim, era eu --
a te trazer à Vida --
e você achou que me amava
quase pelo dia
inteiro