cinnamon girl
"o que de pior ainda pode acontecer?"
é o que se pensa antes de dar outra chance pro diabo
quando já se está condenado
eu devia ter acreditado
na minha intuição --
pois são apenas pistas ambientais
ainda não submetidas a análises funcionais --
e que era tão ruim quanto diziam
após alguns dias primaveris --
imediatamente a ilusão de estabilidade é destruída
por algo tão banal e minúsculo
que nem chega a ser percebido se você não estiver
previamente emparelhado aos escombros
não seria assim para os outros
não seria assim nem para mim se você não --
de súbito a trégua tem seu fim
e tenho vergonha de reagir dessa forma
-- mas não a habilidade
de dar a César o que é dele --
não quero ser tão afeita pelo controle
agindo como sempre critiquei outras mulheres
agora eu as entendo
e pago pela minha língua
-- obrigada a articular frases tênues
e que lambe toda tua extensão acre outra vez --
mas o outro não existe sob nosso domínio
não importa o quão arduamente se tente
em nome do Medo
quando minha terapeuta propõe mindfulness
eu quero que você seja essa folha verde amarelada
que se desprende de uma árvore, no outono,
à beira de um riacho
e se deixa levar em definitivo pela corrente, placidamente
a partir de um estímulo tido como mínimo
a paranóia se instala e cobre com blackout o cômodo
é uma aranha de patas peludas tecendo sua teia
existo só pra ser sua presa
perco a conjunção com meu corpo
a temporalidade se mumifica
em estado de alerta máximo, a consciência quase um delírio
-- ou assim você me quer fazer acreditar
como se a realidade bruta fosse algo
que só você detém e comanda --
e, diferente de ti,
eu posso te provar que essa busca maníaca de fato é sofrimento
qualquer um pode inferir na minha voz atropelada pelo soluço
que você não quer ouvir
nas extremidades geladas do meu relato
que você não acredita
na pressão arterial elevada
nas ligações que você recusa
nas evidências simples que você se nega a conceder
no imploro por ajuda ao qual você se faz surdo
você põe sua voz ainda mais fria que minhas mãos do outro lado
o que só nutre minha impressão de que existe
alguém próximo a quem você não quer transparecer
que às vezes tem por mim certo cuidado
você age a amplificar minhas dúvidas
e está impaciente outra vez, me tratando como um fardo
que nunca te impus carregar
-- mas também não me permite partir
e me segura não importa o quanto não me queira de verdade --
você não admite que me deu todos os motivos para me transformar nesse contexto
e só quer saber se eu já tomei um calmante
para seu benefício de se ver livre
sim, e aos poucos minhas ideias começam a esvoaçar
as falas se tornam desconexas
as pálpebras fazem jus à gravidade
e eu te dou sua paz ao custo de estar dopada
há uma hora eu estava eutímica
eu quase podia te ver daqui mesmo de longe
mas você sublinha em negrito o passado
é óbvio que
é lógico
minha pele volta a ferver em alguns pontos
e se nascem de novo as crostas inflamadas que deixam sangue
sob as unhas
como se eu cavasse no próprio corpo meu túmulo
eu sei que estou errada também
mas estar em segurança não devia ser
uma exigência
sei lá por onde você cruza
ou em quantos anos vou esquecer
(se um dia acontecer)
já que você reaviva todos os dias
sim, você quer que eu te materne
enquanto me usa e engana como só um pai
faz com uma criança que abandonou no berço
ao mesmo tempo me inunda com seu desespero residual
quando me afasto alguns centímetros
para não ser ainda mais ferida
e me acusa de ser a culpada pelo seu descontrole
e de ter "estragado tudo mesmo"
mas o que me acalenta é que fiz tudo que podia
para a inteireza desse reencontro
antes de me preparar para a ausência
há noites que você usa the cure como canções de ninar
e outras que me mantém desperta com histórias de terror
sobre nós dois
tudo seu esforço recente foi sobre
manipular minha interpretação
para me manter calada sobre o que você é capaz de fazer
e quando você age assim
só torna minhas narrativas mais coerentes
se você não quer ter expostas suas pegadas na areia
apenas não pise aí
ao invés de tentar apagá-las com desculpas logo após
o estresse é tal que alucino
com um homem a envolver meu anelar
com uma tira de carne
e eu digo "aceito.
só agora tenho pele humana"
e, para minha sorte, ele não era você