sim, eu posso sentir raiva²
eu uso estratégias de quando era criança
e precisava que meus pais me olhassem
mais demorado
não gosto de agir assim, me faz sentir
que sou insuficiente e falha outra vez
e que é por isso que não entendo o que acontece
eu tenho 6 anos de novo, atônita
quando descobri meu último sobrenome
sem saber de onde derivo
-- ninguém me contou a história direito
é isso que você faz comigo
eu preciso te pedir por favor o óbvio e o mínimo
como te ensinar o movimento de lavar a louça
que você acabou de sujar
ou te apontar o que é esse tom grosseiro
que exige moralmente que você me peça desculpas
ou onde não pôr os pés
no campo que você mesmo enterrou minas
ou onde exatamente em que ponto chave você errou
(pra você o erro só existe
quando eu emito verbalmente a mágoa
você não tem autonomia)
afinal, o que é que ainda espero de você?
o que é que ainda estou fazendo aqui?
que falta vital que rombo no peito são esses
que me impedem de partir?
o que foi de tão horrível que me aconteceu
pra que eu buscasse conforto no alívio ilusório?
quando mentiras conscientes passaram
a me acalentar?
você é absurdamente quente
apenas quando te é conveniente
no mais você é como o gelo aos montes
que preciso mergulhar o corpo
para alterar minha fisiologia e me apaziguar
em cada uma das nossas interações
você tem ideia de quanta violência
eu fui submetida
pra me tornar tão gentil com suas faltas?
ou do quanto me custa
abortar desarranjos biológicos
pra não incomodar vossa majestade
porque você emputa quando choro?
sabe o quanto eu me manipulo
pra ceder às suas chantagens
chamando isso de acordos mútuos?
tem ideia da confusão que você criou
que me faz arremessar tudo pro alto
e quase quase me atirar para o concreto mais abaixo
no primeiro sinal de que estou em risco?
sabe o que é viver numa casa amaldiçoada
que você habita sem presença física?
sabe o quanto custa te manter vivo em mim
sabendo que assim estou impulsionando
minha própria morte?
sabe o quanto tenho que empurrar minhas inseguranças
até se encolherem num cantinho
para me fazer perto de ti?
ou o quanto esse estar perto
me mutila das minhas crenças?
sabe que eu gostaria de nunca ter
trocado contatos?
ou talvez eu precise voltar mais ainda --
sabe o que é acordar de madrugada
sem as tuas mãos
que correm o corpo de outra
mas ainda ter suas digitais frescas no meu?
sabe quanta dor há no orgasmo
quando se percebe que se está sozinha
debaixo de um corpo?
ou quanto fere julgar sua interpretação enviesada
toda vez que se experiencia raiva?
você sabe que tornou uma emoção natural
simplesmente errada?
você sabe o trauma das conjecturas
nas entrelinhas que você cultiva
propositalmente?
-- é como um teste
do quanto eu posso suportar
quantos nunca-mais e adeus eu ainda
terei de passar
pra ter enfim permissão de vivenciar esse luto?
você não sabe pois
está lavando seu cabelo por três horas
batendo uma pra sua atriz preferida
-- você sabe identificar até pelos peitos --
para usar o perfume que comprei e só chegou
depois que você me traiu
prestes a sair para fazer tudo
que você disse que nunca seria capaz
enquanto ignora minhas dezenas de mensagens
enviadas a duras penas de uma UPA sem sinal
questionando cadê a terapia que você prometeu
você não é essa narrativa romântica que você usa
pra investir em mulheres desavisadas
ou essas explicações elaboradíssimas que você confere
pra algo tão banal quanto fraqueza ou malícia
você é o que você faz
você é exatamente isso
que você faz comigo
saber que preciso me afastar
antes que algo pior aconteça
nunca se é violento até ser
isso vale pra mim também
você torna as pessoas
outras delas mesmas
a palavra é o primeiro soco
você nunca me bateu
mas fez coisa pior
eu preferia que você tivesse me espancado
assim seria visível
até pra mim
você assiste resoluto e intacto
enquanto as mulheres se descabelam
por ofensas íntimas que você,
de forma calculada, pronunciou
mas quando um tapa pousa no teu rosto, aí sim
sabe chamar de agressão
eu gostaria de nunca ter precisado
me defender
eu preciso de distância enquanto meu corpo esfria
mas você não para de avançar sobre mim
de todas as maneiras humanas conhecidas
não consigo raciocinar com você
rodeando tudo que me diz respeito
eu preciso dar um passo atrás
e desviar das suas investidas
porque você me contém fisicamente
e eu não caibo
nesse parêntese
ao qual você tentou me relegar
e aperta as laterais da minha mandíbula
quando eu me mordo
estou descontando em mim o fardo
de ser fardo
mas ainda assim estar sempre a serviço
antes de ti eu achei que já conhecia
o que de mais aversivo alguém pode sentir
eu espero realmente que você seja a pior pessoa
pela qual já cruzei
ou eu estarei realmente muito
fodida