banho
dispo-me devagar
e dessa vez
as roupas no chão
são só as minhas --
interrompo o movimento de nudez
sonhando olhos arregalados
que você estivesse outra vez
na soleira da porta
me fitando detidamente.
agora, nem o banho eu tomo mais
em solitude.
corro muito levemente as unhas
pela extensão da cintura, desejando
que fosse tua essa arte da delicadeza
um toque tênue que quase não trisca
um cuidado com minha íntegra
fragilidade
minha inexpressão esvaziada sob a água que cai
a desesperança que ocupou à força o rosto
-- você deveria ver o que deixou
e sinto quase uma dó
de retirar teu cheiro na espuma
penteio o cabelo em automático, sinto as pontas
roçando nos seios e lembro
que você o assistiu crescer
o quanto você gosta mais longo assim
e embora me incomode
não tenho o ímpeto de cortá-lo
-- fidelidade
encontro uma nova sarda de sol no espelho
último sobrevivente das discussões homéricas
descolo os lábios ressecados e empalidecidos
que não devem mais nada te dizer
-- não adianta --
-- você ainda lembra o formato deles ou
do que são capazes de fazer?
despende terror desse corpo órfão
que não pertence a mais ninguém
mas nutro terror, sobretudo, desse corpo
que busca sempre pertencer
me assusta que eu não seja
a primeira e única a possuí-lo
e que eu não seja sua protagonista nem
em potencial
minhas partes íntimas serão seções
desabitadas e interditadas
labirintos empoeirados
onde eu me perdi sem coragem
de explorar
quem dera eu pudesse
ser de novo vista por você
e voltar a existir no mundo comum
ou quem dera eu pudesse existir
sem necessidade de jamais ser vista
longe, eu desvaneço
um vulto sem nome ou biografia
sem origo ou objetivo
esmaecendo até murchar e sumir
quem dera esse corpo que vos fala
(e evoca tua ira ao falar)
houvesse te sido suficiente
e você se acomodasse no interior dele
novamente
e eu me sentisse digna
sob a condição de ser desejada
e exclusiva
não sei bem
que história tristíssima me fez
só me realizar pessoa enquanto posse
quem dera esse corpo não fosse doente
e não tivesse assim te convidado a se retirar
ou até mesmo te expulsado
-- e isso não fosse só uma desculpa
que eu uso para eufemizar
que você tão somente não o quis
esse corpo que você engana
ao promover ínfimos instantes de calma
e intercalar, direcionando o curso de mísseis
para os territórios mais vulneráveis
que eu mesma te confessei quais são
um artefato do trauma
com as bases avariadas
equilibrado de maneira improvisada
em uma estante no seu quarto
desaprendi a confiar na possibilidade
de conexões genuínas
e temo que nunca mais serei apta a amar
outro corpo além do seu
e até a sensação de banho recém-tomado
parece quase
uma traição
esse corpo nunca será
novo
de novo